04/02/2014    12:53hs

Piraci Oliveira: “O STJD é um ‘departamento’ da CBF, nada mais”

“Não pode haver independência administrativa nem técnica se não houver total separação entre as instituições”, destaca o advogado

O advogado Piraci Oliveira (foto) analisa as relações administrativas e financeiras entre a Confederação Brasileira de Futebol - CBF e o Superior Tribunal de Justiça Desportiva - STJD, órgão este subordinado àquela e, portanto - apesar do que pode sugerir seu nome -, alheio ao Sistema Judiciário.

“Uma vez que as despesas (do STJD) são suportadas pela CBF, haverá, sempre, a estranha sensação de favorecimento de seus interesses. Esse fato é ainda agravado quando se tem notícias de que o procurador geral do STJD (Paulo Schmitt), dentre outros, gozou de favores como viagens ao exterior para acompanhar jogos do Brasil com custos suportados pela Confederação. Jamais haverá independência plena se houver dependência financeira. ‘Não há almoço grátis’ ”, enfatiza o advogado.

A atuação do STJD ganhou repercussão nacional no mês de dezembro de 2013, após a punição à Associação Portuguesa de Desportos com a perda de quatro pontos no campeonato brasileiro do mesmo ano em função da escalação irregular de um jogador na última rodada da referida competição. O atleta fora suspenso por dois jogos em sessão do STJD realizada em 06-12-2013. Entretanto, entrou em

 

campo por cerca de 15 minutos na partida Portuguesa 0 x 0 Grêmio - RS, disputada no dia 08-12-2013, em São Paulo. Ou seja, acabou por cumprir apenas a suspensão automática de um jogo. A Portuguesa foi representada por um advogado no julgamento, mas fora comunicada oficialmente da decisão do Tribunal apenas no dia posterior à realização da última rodada do campeonato. A perda de pontos inverteu a posição da Portuguesa e do Fluminense na tabela do brasileirão, rebaixando o clube paulista à segunda divisão.

 

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Nesta entrevista, concedida por e-mail ao sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Piraci Oliveira investiga a organização do STJD, o controle sobre o poder de indicação de seus membros, o fato desses membros não receberem remuneração e a possibilidade da justiça desportiva ser integrada à justiça comum, entre outros pontos. Para ele, os limites do poder da CBF no julgamento de questões jurídicas envolvendo o futebol brasileiro:

 

“São praticamente ilimitados. O Tribunal e a forma de aplicação das penas podem ser desenhados de acordo com os interesses da Confederação, que deve seguir apenas as regras ‘bases’ da formatação dos campeonatos (como pontuação por vitórias e empates, por exemplo)”, avalia Piraci Oliveira.

 

"Jamais haverá independência plena se houver dependência financeira. Não há almoço grátis"

 

Confira abaixo a entrevista na integra.

 

IHU On-Line - A subordinação administrativa e financeira do Superior Tribunal de Justiça Desportiva - STJD à Confederação Brasileira de Futebol - CBF prejudica o funcionamento de uma justiça desportiva para o futebol?

 

Piraci Oliveira - É evidente. Não pode haver independência administrativa nem técnica se não houver total separação entre as instituições. Uma vez que as despesas são suportadas pela CBF haverá, sempre, a estranha sensação de favorecimento de seus interesses. Esse fato é ainda agravado quando se tem notícias de que o procurador geral do STJD, dentre outros, gozou de favores como viagens ao exterior para acompanhar jogos do Brasil com custos suportados pela Confederação. Jamais haverá independência plena se houver dependência financeira. “Não há almoço grátis.”

 

"Tem notícias de que o procurador geral do STJD, dentre outros, gozou de favores como viagens ao exterior para acompanhar jogos do Brasil com custos suportados pela CBF"

 

Esse é apenas um dos pontos que levam o STJD da CBF ao descrédito popular. Há outros ainda mais relevantes, como a ditadura do procurador geral (Paulo Schmitt) e a dinastia Zveiter na Presidência (são ex-presidentes os irmãos Sérgio e Luiz Zveiter, este último pai de Flávio Zveiter, que ocupa o cargo atualmente). A credibilidade da entidade foi reduzida ao extremo. De se notar que, no caso específico da Portuguesa, poderia haver também a condenação da CBF, pois, bem sabemos, em cada jogo, à beira do gramado, há um representante da entidade.

 

Poderia (ou deveria) esse cidadão ter avisado que o atleta (Héverton) não teria condição de jogo (na última rodada do campeonato brasileiro de 2013). Do contrário, para que serve esse representante? Qual a função dele à beira do gramado senão “fiscalizar” o que se passa?

 

"Alguém realmente acredita que os árbitros indicam membro sem que a CBF possa intervir?"

 

IHU On-Line - Esta subordinação à CBF influencia o teor dos julgamentos realizados pelo STJD?

 

Piraci Oliveira - Sim, na medida em que jamais (exceto raras exceções) a CBF é julgada. Uma vez que a própria CBF nomeia 2 membros do STJD e tem forte influência na indicação de outros 2 (dos clubes), não há como se pretender independência de poderes. O STJD é um “departamento” da CBF, nada mais.

 

IHU On-Line - Como é composto e organizado o STJD? De que forma e por quem são indicados seus membros?

 

Piraci Oliveira - A indicação se dá a teor do que estabelece o art. 55 da Lei 9.615/98 (Lei Pelé). O poder de indicação é assim dividido: os clubes, a CBF, a (Ordem dos Advogados do Brasil -) OAB e a (Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol -) FENAPAF indicam dois membros cada e os árbitros indicam um, compondo nove membros ao total. Note que todos, exceto a OAB, são extremamente vinculados à CBF. Alguém realmente acredita que os árbitros indicam membro sem que a CBF possa intervir? E o que se dirá dos clubes?

 

IHU On-Line - Além do estatuto da CBF, que outros instrumentos legais regulamentam o funcionamento do STJD?

 

Piraci Oliveira - Basicamente o STJD é pautado pela Lei Geral do Desporto (Lei Pelé), o Estatuto do Torcedor e o próprio Regulamento das Competições. Por sua vez, por se tratar de um órgão que se pretende “julgar” os fatos ocorridos nas competições, há aplicação completa de todo ordenamento jurídico nacional. Tanto o Código Penal quanto o Civil podem e são utilizados subsidiariamente nos julgamentos, a despeito de terem um peso menor.

 

IHU On-Line - Na sua avaliação, a punição da Associação Portuguesa de Desportos com a perda de quatro pontos no campeonato brasileiro de 2013 pode ser classificada como uma decisão técnica ou teve um caráter político preponderante?

 

Piraci Oliveira - Qualifico como um histórico erro técnico. Havia argumentos de sobra para que os julgadores mantivessem o resultado da competição penalizando a Lusa (no pior cenário) no campeonato brasileiro de 2014(Série A). Para não ir longe é assim que a FIFA indica deva ser feito. Juridicamente falando há outros tantos argumentos como:

A) Razoabilidade - A aplicação da lei deve ser flexibilizada para perfeita adequação ao caso prático e rebaixar um clube por escalar um atleta por 12 minutos, convenhamos, ultrapassa o limite do razoável;

B) Mudança da Lei - Em 2013 houve mudança do Estatuto do Torcedor (Lei Federal 10.671/2003), tornando obrigatório que as decisões sejam publicadas de acordo com a publicitação do Poder Judiciário, o que obriga haver intimação formal;

C) Contagem dos prazos - Pela nova regra a contagem nunca poderia ser iniciada no mesmo dia;

D) Bagatela - O mal causado ao campeonato (12 minutos) é insignificante para o grande dano aplicado;

E) Ausência de Dolo - Não há crime sem vítima. A Lusa não sabia que o atleta estava suspenso. Agiu de boa-fé e não pode ser punida por isso. E muitos outros.

 

Em Direito se diz que “não há texto sem contexto” e foi justamente nesse ponto que o STJD pecou. Tomou a letra fria de um regulamento (ato administrativo) como se fosse superior à Lei e aos princípios gerais de direito. Faltou conhecimento aos julgadores.

 

"O Tribunal distanciou-se dos torcedores deixando o amargo gosto de virada de mesa. A Lusa foi nitidamente prejudicada por um julgamento mal conduzido

 

IHU On-Line - Como você avalia a possibilidade de uma decisão que punisse o clube em questão com a perda de pontos na próxima edição do campeonato brasileiro, de forma a evitar a interferência do tribunal nos resultados obtidos dentro de campo?

 

Piraci Oliveira - Seria a melhor alternativa caso houvesse decisão pela punição. Insisto que, na minha opinião, deveria haver absolvição, mas caso o STJD (como um tribunal de penas e não de direito) decidisse por punir, que ao menos respeitasse o resultado do campo, aplicando a punição em 2014. Punir ao rebaixamento foi um acinte ao bom entendimento jurídico desportivo. O Tribunal distanciou-se dos torcedores deixando o amargo gosto de “virada de mesa”.

 

IHU On-Line - Qual deverá ser o papel da justiça comum neste caso?

 

Piraci Oliveira - Penso que a Lusa deve procurar a Justiça Comum, pois, obedecendo à Constituição Federal de 1988, esgotou as instâncias desportivas. Foi nitidamente prejudicada por um julgamento mal conduzido, e buscar seu direito junto ao Poder Judiciário é algo que ela deve fazer. Não à toa praticamente totalidade da comunidade jurídica está em defesa de sua manutenção na Série A. Ou estamos todos errados ou estão os julgadores do STJD. Que a Justiça Comum seja chamada para dirimir essa questão.

 

"Desconfio muito de quem trabalha por 7, 8, 9 anos “de graça”. Para mim isso não cheira bem"

 

IHU On-Line - A justiça desportiva poderia integrar a justiça comum?

 

Piraci Oliveira - Sou contra. Os prazos e a informalidade da esfera desportiva não seriam atendidos pela Justiça Ordinária. Acredito que o STJD deve ser mantido dessa forma, porém, com ingresso por concurso, mandatos por prazo certo e remuneração condizente. Como já disse antes, desconfio muito de quem trabalha por 7, 8, 9 anos “de graça”. Para mim isso não cheira bem.

 

IHU On-Line - Que experiências podem ser apontadas como alternativas ao modelo de gestão do futebol implementada pela CBF, que é um órgão privado caracterizado pela ausência de participação pública e de prestação de contas dos atos?

 

Piraci Oliveira - No mundo inteiro o sistema de julgamento é muito parecido. No Brasil parece-me haver mais formalismo, o que não creio atrapalhar. Como dito antes, acredito que um sistema de preenchimento de postos por concurso público com mandatos por prazo certo (talvez 3 anos) e remuneração faria com que os julgamentos fossem técnicos, deixando de lado suspeitas de favorecimento ou ausência de independência.

 

IHU On-Line - Qual a contribuição da FIFA para este modelo de justiça desportiva no futebol?

 

Piraci Oliveira - A FIFA não interfere nos julgamentos de clubes de um mesmo país. Não havendo litígio internacional, a FIFA não se envolve, até para respeitar as peculiaridades de cada cultura desportiva e social. Não acredito que num futuro próximo possa haver uma uniformização ou implementação de modelos similares patrocinadas pela FIFA. Cada país deve julgar seus litígios com as leis e regras internas, mas, óbvio, dentro do contexto pregado pela entidade máxima. No caso da Lusa, a própria FIFA entende que o resultado do jogo deve ser mantido, havendo punição no ano seguinte.

 

IHU On-Line - Quais são os limites do poder da CBF na gestão do futebol brasileiro?

 

Piraci Oliveira - Na questão da justiça desportiva são praticamente ilimitados. O Tribunal e a forma de aplicação das penas podem ser desenhados de acordo com os interesses da Confederação, que deve seguir apenas as regras “bases” da formatação dos campeonatos (como pontuação por vitórias e empates, por exemplo).

 

"Entristece ter acompanhado a forma infeliz e contraditória como o julgamento foi conduzido"

 

IHU On-Line - Gostaria de realizar algum comentário adicional?

 

Piraci Oliveira - Na linha do que foi antes descrito e como membro da comunidade jurídica desportiva nacional, sinto-me decepcionado com a decisão do “caso Lusa”, pois o Tribunal (do qual nunca se maculou por má-fé) agiu em desatendimento de preceitos básicos do direito desportivo, mudando o resultado do jogo e rebaixando uma equipe que a duras penas conseguiu os resultados necessários para ficar na série principal.

 

 

 

Entristece-nos ter acompanhado a forma infeliz e contraditória como o julgamento foi conduzido e o resultado prolatado. Depois das oitivas das testemunhas e das defesas orais dos advogados, os relatores (de primeiro e segundo graus) sacaram os votos do bolso (pré-elaborados), demonstrando que a convicção deles já estava tomada há tempos. Como advogado, (digo que) foi triste, pobre, medíocre. Como torcedor, sinto que a esperança num desporto melhor foi aniquilada, o que é ainda mais triste. Pobre “país-do-futebol”.

 

Piraci Ubiratan Oliveira Junior:  é advogado e contabilista, possui MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV e mestrado em Direito Social pela Faculdade Autônoma de Direito – Fadisp.

 

É autor dos livros Clubes Brasileiros de Futebol: reflexos fiscais (Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2004) e Autonomia das Associações Desportivas e o Clube Empresa (São Paulo: Iglu Editora, 2012), além de torcedor e conselheiro da Sociedade Esportiva Palmeiras.

 

Fonte: Luciano Galla-  Instituto Humanitas Unisinos

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