Crédito: Tiago Coelho/Uol |
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Márcio Chagas: "Sendo negro em um
estado racista como o RS, eu me acostumei a ser o único
da minha cor nos lugares que freqüento" |
Um dia meu filho de
cinco anos me perguntou por que os pretos dormem na rua e são
pobres. Expliquei que é um resquício da escravatura, que estamos
tentando mudar isso, mas que é difícil. Não sei se ele entendeu. Às
vezes nem eu entendo. Sendo negro em um estado racista como o Rio
Grande do Sul, eu me acostumei a ser o único da minha cor nos
lugares que freqüento.
Fui o único negro
na escola, o único namorado negro a freqüentar a casa de meninas
brancas e, como árbitro, o único negro apitando jogos no Campeonato
Gaúcho. Hoje sou o único negro comentando esses jogos na TV local.
Durante muito tempo, me calei ao ouvir alguma frase racista.
Engolia, como se não fosse comigo. Mas era comigo. A verdade é que
estou puto com os racistas. Todo fim de semana escuto gente me
chamando de preto filho da puta, macaco, favelado. "Matar negro não
é crime, é adubar a terra", eles dizem. Estou de saco cheio dessa
história.
A galera saiu do
armário total, não tem vergonha nenhuma. As manifestações racistas
estão vindo cada vez mais ferozes e explícitas. O fato de eu estar
na TV agride muito mais as pessoas do que quando eu apitava. O
racista não aceita que você ocupe um espaço que você não deveria
ocupar.
Dá vontade de sair
na mão com esses caras, mas sei que se eu fizer isso vou perder a
razão.
Márcio Chagas lê ofensas que recebe gratuitamente
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Crédito: Tiago Coelho/Uol |
Em um
Avenida x Internacional, em Santa Cruz do Sul, o juiz
marcou um pênalti que não aconteceu e eu comentei no ar
que o pênalti não aconteceu. Um torcedor foi no meu
Instagram e escreveu: "Não gosta de ser chamado de
preto, mas tá fazendo o quê aí?" O que tem a ver a minha
cor com o meu comentário? Outro cara me chamou de
"crioulo burro" e um terceiro disse que, se pudesse, me
enfiaria uma banana no rabo. Os caras escrevem isso em
público, com nome e sobrenome. Já acionei o Ministério
Público.
Caxias
do Sul, para mim, é uma das cidades mais terríveis para
trabalhar. Há algumas semanas, fui transmitir um jogo no
estádio Alfredo Jaconi e passei uma tarde inteira
ouvindo xingamentos. Tive que ouvir que era um preto
ladrão, que estaria morrendo de fome se a RBS, a Globo
local, não tivesse me contratado, que eles tinham
trazido banana pra mim. A cada cagada que o árbitro
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fazia em
campo, eles se voltavam
contra mim na cabine e xingavam. Eu virei um pára-raios
pro ódio deles. |
Um dia, em um Juventude x Internacional, a arbitragem estava tendo
uma péssima atuação. Houve um pênalti não marcado para o Juventude,
e uns torcedores que ficavam perto da cabine se viraram para mim
dizendo coisas como: "E aí, preto safado, vai falar o quê agora?" Eu
já tinha dito no ar que o juiz tinha errado ao não marcar o pênalti.
O clima já estava pesado desde o começo, e eu me segurava para não
descer lá e ir pro soco com os caras, mas é tudo que eles querem,
não é?
Uma mulher com uma
criança de colo se virou para mim e começou a xingar: "Negro de
merda, macaco, fala alguma coisa". Ela veio em minha direção, achei
que ia me dar uma bofetada ou cuspir na minha cara, que é uma coisa
que eles costumam fazer na serra gaúcha.
"O que eu fiz para
você", perguntei quando ela se aproximou.
"Você não está
vendo que ele está roubando, que não marcou o pênalti?", perguntou
de volta, apontando ao árbitro em campo.
"Moça, tudo que
você está falando eu disse na transmissão. Por que você está dizendo
essas coisas para MIM?"
"É que você colocou
ele lá", ela respondeu. E eu tive que explicar que quem escala os
árbitros é a
Federação Gaúcha e
que eu não tenho nenhuma influência sobre ela.
No intervalo, um
rapaz que estava com a namorada virou e disse: "Aprendeu direitinho
como roubar o Juventude, né, preto de merda? Se não fosse a RBS,
estaria na Restinga roubando ou morrendo de fome." Os racistas
costumam usar o bairro periférico e violento da Restinga, em Porto
Alegre, para me atacar. Quando essas coisas acontecem, os colegas
brancos dizem para eu deixar pra lá, que eu sou maior que isso, que
estamos juntos, que bola pra frente. Juntos no quê? Deixar pra lá
como? Quem sente a raiva e o constrangimento sou eu. Como "estamos
juntos"?
Depois de muito
tempo ouvindo esse tipo de coisa, eu desenvolvi uma forma de defesa,
que também é uma forma de ataque. No final do jogo, quando um cara
disse que tinha trazido uma banana ("porque eu sei que tu gosta"),
eu falei que gostava mesmo. "Já brinquei muito de banana com tua
mãe." Os amigos dele riram, e o cara saiu com o rabo no meio das
pernas.
Tem um motivo de
eles sempre se referirem a bananas quando querem me agredir.
No dia 5 de março
de 2014, o Esportivo jogou contra o Veranópolis, em Bento Gonçalves,
uma cidade perto de Caxias, também na serra gaúcha. Essa é a região
mais racista do estado. Logo que saí do vestiário já fui chamado de
macaco, negro de merda, volta pra África, ladrão. Falei pros meus
colegas:
"Se nem começou o
jogo os caras já estão assim, imagina no final."
Acabou a partida.
Jogando em casa, o Esportivo venceu por 3 a 2, e não teve nada
anormal no jogo: nenhuma expulsão, nenhum pênalti polêmico, lance de
impedimento controverso, nada. Mesmo assim os torcedores se postaram
na saída do vestiário para me xingar.
A uma distância de
uns dez metros, questionei um senhor que estava com o filho:
"É isso que você
está ensinando pro seu filho?"
"Vai se foder,
macaco de merda."
"Uma ótima semana
pro senhor também", respondi e desci ao vestiário. A polícia não fez
menção de interpelar os torcedores, mas registrei os xingamentos na
súmula.
Tomei meu banho,
esperei meus colegas e saí do vestiário pra pegar meu carro, que
estava em um estacionamento de acesso restrito à arbitragem e
funcionários dos clubes. Encontrei as portas do carro amassadas e
algumas cascas de banana em cima.
Ao dar partida no
carro, ele engasgou duas vezes. Na terceira tentativa, caíram duas
bananas do cano de escapamento. Alguém colocou duas bananas no cano
do escapamento. Meu colega Marcelo Barison ficou horrorizado.
Caminhei revoltado
para o vestiário. O atacante do Esportivo Adriano Chuva, negro, me
pegou pela mão e me levou um pouco mais afastado. Ele disse que ali
aquilo era normal. "Você tem que ver o que eles fazem com a gente no
centro da cidade." Ele dizia que os negros do time preferiam jogar
fora de casa para não ser chamados de macaco em seu próprio estádio.
Crédito: Fabio Braga/Folhapress |
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Ao chegar em Porto
Alegre, refleti sobre o que deveria fazer. Encaminhei um texto para
uns jornalistas que eu conhecia, e o caso veio a público. Francisco
Novelletto, o presidente da Federação Gaúcha, me ligou, dizendo que
eu deveria tê-lo procurado antes de falar com a imprensa, porque a
denúncia estava prejudicando a imagem do campeonato. Ele disse que
poderia pagar para consertar meu carro.
"Não quero seu
dinheiro, quero respeito", eu lembro de ter dito. Novelletto também
sugeriu que se eu continuasse com a denúncia, isso poderia
prejudicar a minha carreira. Eles fazem essa chantagem emocional. Eu
continuei com a denúncia.
No Superior
Tribunal de Justiça Desportiva, o Esportivo perdeu três pontos por
causa desse jogo e acabou rebaixado naquele campeonato. Até hoje,
quando querem me atacar, os racistas dizem que fui eu quem rebaixei
o clube. Mas eu não rebaixei ninguém. O que eu fiz foi denunciar o
ataque absurdo que sofri. O clube nunca entregou a pessoa que
colocou as bananas no meu carro.
Crédito: Tiago Coelho/Uol |
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Ao longo do
processo, me senti desamparado e desvalorizado pela federação. Eu
tinha 37 anos e era aspirante à FIFA, imaginava que ainda podia ter
uma carreira internacional. Mas, por causa desse episódio, fiquei
tão de saco cheio que resolvi largar o apito. Apitei a final do
campeonato e parei. Até hoje não posso pisar na federação. A
federação nunca mais teve um árbitro negro.
Na esfera cível,
processei o Esportivo por danos morais. Durante o julgamento, o
advogado deles debochou do racismo que sofri no estádio. "Chamar
negro de macaco não é ofensivo", ele disse. "Ofensivo é amassar o
carro porque, como diz a propaganda do posto Ipiranga, todo
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brasileiro
é apaixonado por carro." Essa frase me fez decidir
abandonar o futebol. Em janeiro deste ano, o Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul condenou o clube a me pagar
R$ 15 mil. Até hoje não pagaram. |
Eu refleti muito
antes de vir aqui contar tudo isso. No futebol, existe uma tendência
ao silenciamento quando o assunto é racismo. Muito jogador negro que
passa por isso prefere ignorar os ataques temendo ter problemas na
carreira se abrir a boca. Outro dia um jogador saiu de campo na
Bolívia. Todos deviam fazer o mesmo, principalmente os medalhões.
Eu posso até me
prejudicar no trabalho, mas resolvi comprar a briga porque nos
fóruns que reúnem negros, costumamos dizer que os racistas podem nos
fazer duas coisas: ou eles nos matam ou eles nos adoecem.
Eu me recuso a
morrer ou adoecer. Prefiro lutar. Quando esses ataques acontecem,
minha mulher, que é negra, me dá a força que ela consegue. Ela sabe
muito bem o que é isso. Meus filhos ainda não sabem. Eu fortaleci a
consciência da minha negritude principalmente pelo rap, ouvindo
aquela música, analisando aquela letra e me identificando com aquela
situação retratada.
Os racistas não
sabem, mas eles só fortaleceram minha consciência racial. Eu falo
pro meu menino que ele é lindo. Enalteço o nariz e o cabelo "black
power" dele, digo para ele sempre valorizar a negritude que ele tem.
Minha filha tem dois anos e vou procurar fazê-la ter orgulho de si
mesma, assim como eu tenho da nossa raça.
Minha briga é por
mim, mas também por eles. Os racistas não vão nos matar.
Crédito: Tiago Coelho/Uol |
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Presidente da
federação gaúcha diz que críticas são injustas
Crédito: Karine Viana/Palácio Piratini |
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Procurado pela
reportagem para comentar a declaração de Márcio Chagas da Silva, o
presidente da Federação Gaúcha de Futebol, Francisco Novelletto,
afirmou que as críticas do ex-árbitro são injustas e que não deixou
de apoiá-lo no episódio de racismo em 2014.
"O Márcio está
faltando com a verdade", afirmou Novelletto. "Quando soube do fato,
liguei para ele em um gesto de grandeza para saber o que tinha
acontecido. Ele me narrou uma versão 'super light' dos fatos e tirou
toda a culpa do Esportivo. No dia seguinte, para minha surpresa,
apareceu dando entrevista chorando na TV e se dizendo indignado.
Achei isso estranho."
Segundo Novelletto,
a federação lançou uma nota de repúdio contra o comportamento do
Esportivo e iniciou uma campanha no seu site de combate ao racismo.
De acordo com o cartola, as ofensas que Márcio Chagas sofre são
conseqüência da briga que ele comprou contra o Esportivo. "Eu se
fosse patrão dele, não mandava ele para trabalhar nessas cidades,
você sabe como torcedor é."
Para o cartola, não
é papel da federação defender o árbitro porque "ele é um prestador
de serviço".
"E os donos da
federação são os clubes", disse ele.
Esportivo diz que
assunto ficou no passado
Presidente do
Esportivo desde 2017, Anderson Vanela afirmou que o clube não faria
maiores comentários sobre o episódio das bananas em 2014 porque "o
assunto ficou no passado."
"O clube acata a
decisão judicial, mas não concorda. A cidade se machucou muito, a
comunidade inteira sentiu. Bento Gonçalves é uma cidade turística,
que acolhe a todos e não tem em seu histórico qualquer tipo de ato
racial", afirmou Vanela.
O Esportivo já fez
o depósito dos R$ 15 mil a título de reparação a Márcio Chagas.
"Aqui no clube ninguém mais fala do assunto."