Ele já apitou mais de 100 jogos de equipes de primeira divisão do
Brasil. Tem partidas internacionais no currículo e perdeu as contas
de quantos países visitou. É um "árbitro top", como costumam dizer
no meio. No entanto, ele não se sente realizado. Há dois anos, optou
por terminar um relacionamento com outro homem para não colocar a
carreira em risco. É o preço que um juiz de futebol gay paga para
ser aceito na profissão.
"Se para um jogador, que é idolatrado por
onde passa, já é difícil se assumir, imagina para um árbitro que é
xingado pelo estádio inteiro toda vez que entra em campo?",
afirma o juiz, que pediu absoluto sigilo de sua identidade para
falar com a reportagem de VICE Sports. Ele teme as conseqüências de
revelar sua orientação sexual entre seus chefes da Comissão de
Arbitragem da CBF e, principalmente, entre torcedores e dirigentes
de clube, que já o ameaçaram depois de jogos com marcações
controversas. Sérgio Cenedezi, 52,
bandeirinha por quase duas décadas, tomou caminho diferente. De 1985
a 2003, trabalhou como assistente em vários jogos de campeonatos
estaduais, Brasileiro e Copa do Brasil, sem nunca esconder de seus
pares que é homossexual.
"Eu sou assumido. Modéstia à parte, só
trabalhei tanto tempo à beira do gramado porque eu era muito bom.
Senão teriam me matado", conta. Hoje
aposentado da arbitragem, Cenedezi é secretário de um tribunal de
justiça em São Paulo. Ele guarda poucos amigos do futebol. E um
desgosto. Apesar de ter sido um dos bandeirinhas mais requisitados
da década de 90, não alcançou o posto máximo de sua antiga
profissão.
"Faltou botar o escudo da Fifa no peito",
diz. "Várias vezes fui cotado para receber a indicação da CBF. Mas
sempre alguém surgia com o comentário: 'Ah, ele é viado'. Pois digo
que prefiro ser viado do que ladrão, como muitos dos que hoje tomam
conta do futebol brasileiro."
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"Ser gay não é
crime. Por isso não escondo nada de ninguém", afirma Sérgio
Cenedezi. Foto: Felipe Larozza |
Embora o preconceito tenha contribuído para
barrar sua ascensão ao alto escalão do apito, Cenedezi diz não se
arrepender da escolha de revelar sua orientação sexual. "Ser gay não
é crime. Por isso não escondo nada de ninguém", afirma o
ex-assistente, que também revela já ter saído com jogadores de
grandes clubes do país. Relacionamentos extracampo, porém, enfatiza,
não interferiam em suas marcações.
"Preferências pessoais jamais influenciaram
meu trabalho." Como em todas as
profissões, gays não são novidade na arbitragem. Há até uma
expressão para se referir a eles no meio: "membros do sindicato".
Ainda assim, todos continuam sofrendo para exercer o ofício no
terreno mais machista do futebol.
Penalidade
mínima Ofensas e atitudes
homofóbicas costumam ser relativizadas no contexto futebolístico.
Entre os homens do apito, comportamentos preconceituosos fazem parte
da normalidade e estão imunes de punição. Em junho, o árbitro
Marcelo de Lima Henrique postou em sua página no Facebook uma defesa
ao deputado Jair Bolsonaro:
"Prefiro votar em louco do que em
incentivador de boiolices, maconheiro e inimigos da família(...) Não
sou politicamente correto, não apoio boiolices". O Superior
Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) entendeu que não havia motivo
para abrir denúncia contra o árbitro por suas declarações.
"Se no Congresso Nacional, um deputado
[Bolsonaro] propaga discurso de ódio contra os gays livremente, no
campo de futebol é ainda pior", diz Sérgio Cenedezi.
O burburinho em torno da homossexualidade na
arbitragem remonta ao fim da década de 80, quando o trio MBB chocou
a sociedade da bola ao assumir publicamente sua orientação sexual.
Margarida, Bianca e Borboleta eram os nomes de guerra dos árbitros
Jorge José Emiliano dos Santos, Walter Senra e Paulino Rodrigues da
Silva, respectivamente. Margarida foi o
primeiro a se declarar. Peitou o então mandachuva da Comissão de
Arbitragem, João Ellis Filho, que chegou a dizer que, enquanto fosse
presidente, nenhum juiz homossexual apitaria jogos. Em sua defesa,
Margarida era enfático:
"Antes ser lembrado como um juiz bicha do
que como um juiz desonesto".
Surgia ali "o sindicato", do qual Cenedezi
sempre fez parte. "Naquela época tinha mais gay do que hétero no
quadro de árbitros", conta.
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Clésio dos
Santos, o Margarida, teve de abandonar a carreira por causa
de seu personagem gay |
Em vez de amenizar a discriminação, a grande
influência que o trio MBB exerceu até o início dos anos 90 fez com
que outros juízes saíssem do armário e gerou cicatrizes profundas na
arbitragem. Muitos enxergavam Margarida e seus seguidores como
detratores da profissão. Iniciou-se, então, uma verdadeira caçada
aos árbitros gays, curiosamente liderada por Armando Marques,
ex-árbitro que sofria com gritos de "bicha, bicha!" nos estádios e
insultos homofóbicos de dirigentes. Em 1998, por exemplo, o
presidente do Vasco, Eurico Miranda, o chamou de "homossexual
travestido". Um ano antes, Armando Marques havia assumido a
presidência da Comissão de Arbitragem e começado uma perseguição
silenciosa aos homossexuais sob seu comando.
Mesmo casado com uma mulher há 32 anos e pai de
três filhos, Clésio Moreira dos Santos acabou sendo uma das vítimas
da fúria persecutória de Armando Marques. Mais velho de uma família
de sete irmãos, ele foi abandonado pelo pai aos 11 anos. Ainda na
adolescência, começou a trabalhar com teatro de rua na cidade de
Palhoça, em Santa Catarina. Virou árbitro de futebol e, aproveitando
o talento para encenar, resolveu adotar o personagem Margarida, em
homenagem ao antigo árbitro. Entrou para o quadro da CBF em 1995 e
chamava a atenção por vestir um uniforme inteiramente rosa. Suas
atuações de gestos extravagantes caricaturam um árbitro gay.
Apesar de sempre ter deixado claro que não é
homossexual, o Margarida genérico incomodou o ex-presidente da
Comissão.
"O Armando Marques mandou um recado para o
presidente da Federação Catarinense [Delfim de Pádua Peixoto]:
'Avisa pro seu Margarida aí que viado aqui só tem um'. Depois disso,
ele começou a me escalar em jogos sem expressão, em lugares remotos.
Tive de abandonar a carreira profissional", afirma Clésio, que
deixou o quadro de arbitragem em 2002.
Atualmente, Margarida apita somente em jogos festivos. Fatura mais
dinheiro do que nos tempos em que era árbitro da CBF. Sua situação é
emblemática: ele ganha a vida encarnando o personagem de um árbitro
gay, algo que um homossexual de verdade dificilmente conseguiria.
Armando Marques foi presidente da Comissão de Arbitragem até 2005.
Não teve filhos e jamais revelou sua orientação sexual. Ele morreu
há dois anos, mas sua herança homofóbica ainda paira sobre a
arbitragem nacional.
A tropa de
choque do apito Em 2009, o árbitro
Halil Ibrahim Dinçdag foi proibido de apitar jogos oficiais pela
Federação Turca de Futebol. Com base em um relatório do Exército da
Turquia, que o havia dispensado dois anos antes por considerar sua
homossexualidade uma doença, a Federação alegou que ele não poderia
mais atuar nas partidas por supostamente ter um problema de saúde.
Durante o processo de expulsão do quadro de arbitragem, dirigentes o
acusaram de favorecer jogadores por causa da aparência.
"Isso devastou minha vida", afirma
Halil à VICE Sports.
"Desde então estou sem trabalho. Não
consigo emprego em lugar nenhum. Nesse período, ainda recebi o
diagnóstico de um câncer. Os danos físicos, morais e materiais são
incalculáveis." No fim do ano
passado, um tribunal de Istambul condenou a Federação a pagar
indenização de cerca de 25.000 reais a Halil por discriminação
sexual.
"A justiça foi feita de forma tardia, após
seis anos de luta. De qualquer forma, considero a decisão uma
vitória para todo o movimento LGBT", afirma o ex-árbitro, que
tenta se reerguer com a ajuda de amigos e milita em causas de
combate ao preconceito em seu país.
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Halil Ibrahim
Dinçdag foi proibido de apitar porque sua homossexualidade
seria uma doença |
A realidade por aqui não é tão diferente da
Turquia. Boa parte das capitanias que comandam o futebol brasileiro
é controlada por figuras ligadas a instituições militares. São
dirigentes que se perpetuam no poder ao longo de décadas, muitas
vezes se autointitulando de coronéis. É o caso de Antonio Carlos
Nunes de Lima, coronel da reserva da Polícia Militar que se manteve
no comando da Federação Paraense de Futebol por 20 anos e,
recentemente, foi presidente interino da CBF. Na arbitragem, o
controle militar é ainda mais rígido.
Marcelo de Lima Henrique, o árbitro que não apóia "boiolices", é
sargento dos Fuzileiros Navais. Sérgio Corrêa, presidente da
Comissão Nacional de Arbitragem, responsável pela escala de árbitros
da CBF, ex-oficial da Aeronáutica. Seus antecessores Edson Rezende
(delegado da Polícia Federal) e Aristeu Leonardo Tavares (tenente da
PM) e seu vice Nílson de Souza Monção (coronel aposentado do
Exército) também têm patentes de autoridade.
Não é à toa que os cursos oficiais de
arbitragem seguem cartilhas quase militares. No código de conduta
dos árbitros, há instruções até de vestuário, como não sair em
público com a camisa para fora da calça antes dos jogos.
"Querem que o árbitro passe uma imagem de
sargentão, que banque o machão dentro e fora do campo", diz
Margarida, que foi desaconselhado por vários colegas ao incorporar
seu personagem. "Falavam que eu estava queimando o filme da classe."
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Sérgio Cenedezi:
"Na arbitragem, ainda existe um desprezo enorme por mulheres
e gays." Foto: Felipe Larozza |
Em um ambiente tão repressor, o machismo
arraigado do futebol se tornou política institucional da arbitragem.
Em 1997, Sérgio Cenedezi foi pioneiro ao criar o primeiro curso para
mulheres no Sindicato de Árbitros de São Paulo. Não sem enfrentar
forte resistência.
"Todos diziam que lugar de mulher é no
fogão, inclusive o Armando Marques. Eu quis quebrar esse
preconceito. Mas a verdade é que, na arbitragem, ainda existe um
desprezo enorme por mulheres e gays", afirma.
Procuradas pela reportagem, comissões e
cooperativas regionais de árbitros informaram que não promovem
campanha – nem a favor nem contra – homossexuais. O Sindicato dos
Árbitros de São Paulo, por meio do diretor Carlos Donizeti, afirma
que "como nunca tivemos denúncia [de preconceito] dos árbitros,
não achamos necessário tomar nenhuma medida". A Comissão
Nacional de Arbitragem, por sua vez, diz que não discrimina ninguém
pela orientação sexual. Denúncias de
homofobia dificilmente chegarão aos ouvidos dos barões da arbitragem
brasileira, já que, ao contrário de décadas atrás, não há sequer um
profissional abertamente homossexual em seus quadros. Sob o risco de
boicote no mercado de trabalho, os árbitros gays, que um dia
levantaram a bandeira pelo impedimento do machismo, hoje só podem se
resignar com o silêncio para manter seu sindicato em segredo.
Fonte: Vice Sports - Por Breiller Pires
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