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 26/02/2015    08:36hs

ENTREVISTA

Marcelo Aparecido Ribeiro de Souza

Se o estádio é o plano ritual no qual se vivencia de forma mais intensa a dimensão do torcer, outros espaços cotidianos também são palcos da performance torcedora, principalmente os bares e botecos, locais de consumo dos eventos futebolísticos e espaços de sociabilidade privilegiados para a interação lúdica, juntar os amigos, tomar uma cerveja e petiscar porções durante o jogo televisionado. Na arena do bar, boleiros boêmios recriam um clima de arquibancada que pode não ser tão absorvente quando o do estádio, mas que se revela descontraído e animado, onde torcedores também vestem as camisas de seus times de coração, gritam, comemoram, discutem e xingam o árbitro.

Mas como reclamar do juiz se o próprio dono do bar é um árbitro de futebol? É o que acontece na Chopperia e Espetinho do Juiz, inaugurada em 2010 no bairro de Guaianases, Zona Leste. Marcelo, dono do bar, é árbitro de futebol, vinculado à FPF -Federação Brasileira de Futebol e à CBF – Confederação Brasileira de Futebol. Morador da Zona Leste, Marcelo decidiu unir a sua atuação como empresário ao seu papel central no cenário futebolístico. O juiz afirma que teve alguns receios quando abriu o bar: “Como é que vai ser o torcedor, que na hora da emoção perde a razão?”. Porém, nunca teve problemas com torcedores no bar. Ao contrário, o sucesso do bar em Guaianases levou à criação de um novo bar do juiz no bairro do Patriarca, também na Zona Leste.

Foto: Giancarlo Machado

O arbitro Marcelo Aparecido Ribeiro de Souza em um de seus estabelecimentos em Guaianases
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Como tem início a carreira de um árbitro de futebol?

Para iniciar você tem quer fazer um curso preparatório. A Federação de cada estado faz esse curso, no meu caso, a Federação Paulista de Futebol (FPF). A pessoa se inscreve, faz uma prova, se aprovada, participa do curso, que hoje tem uma média de 80 alunos por ano. São dois anos de curso preparatório e depois estágio de um ano. A partir daí o aluno está pronto para atuar em todas as categorias que a Federação promove. No início, apita o sub13, sub15 e sub17. Quando comecei na FPF em 1998, apitava jogos do sub15. Hoje o estágio já se inicia no sub13. Cada vez mais está precoce, tanto para o jogador quanto para o árbitro de futebol. Na época, quando comecei, a idade ideal para iniciar na carreira era 30 anos. Hoje é mais cedo, entre 20 e 25 anos. Ao mesmo tempo em que o garoto está pensando em ser jogador de futebol, você tem que estar se preparando para ser árbitro de futebol. Quando comecei, a carreira de um árbitro de futebol ia até os 50 anos. Ela foi reduzida para 45 anos e a FIFA acredita que por causa do desgaste físico e mental o ideal seja 40 anos no máximo. Então, o árbitro de futebol já é profissional, mas não é reconhecido profissionalmente. Mas a profissão “árbitro de futebol” será criada.

Além dos torneios de categorias de base, você também apitou jogos de futebol de várzea?

Apitei. É uma escola, um aprendizado. Participei de jogos promovidos pela Prefeitura e por clubes de São Paulo. A competição de futebol amador mais forte que temos em São Paulo, e talvez do Brasil, é a Copa Kaiser. Apitei jogos da Copa Kaiser, que tem times fortes de diferentes regiões, inclusive com ex-jogadores profissionais. Muitos jogadores amadores saem destes campos de várzea e se tornam profissionais, até de nível internacional, como o volante Elias, que está no Corinthians, e o Leandro Damião, agora no Cruzeiro.

E qual é o seu vínculo hoje?

Hoje sou vinculado à FPF e árbitro da CBF. Apito jogos do Campeonato Paulista e do Campeonato Brasileiro. Nós árbitros ficamos à mercê da sorte, pois a escala é definida por sorteio. Nós somos selecionados para um jogo, o árbitro A e o árbitro B. E acontece um sorteio. Já aconteceu de ir para vários sorteios seguidos e ter a infelicidade da bolinha não cair. Mas hoje, coincidentemente, falando com vocês, vou viajar para apitar amanhã um jogo da Copa do Brasil no Rio Grande do Sul.

E como são os preparativos da viagem?

O ideal é chegar na cidade um dia antes, para não correr risco de pegar trânsito, de algum outro problema, e já ficar concentrado para a partida. Se você sai do trabalho direto para o jogo, você não consegue se desligar, ninguém é máquina. É preciso descansar e ficar focado no jogo.

E vocês também, tal como os jogadores, têm que ficar concentrados no dia do jogo?

A CBF nos passa uma cartilha de procedimentos com o que ela acha ideal. Por exemplo: pede para chegar um dia antes; que toda a equipe de arbitragem de reúna antes para conversar e fazer um plano de trabalho para o jogo (como atuar, ou se tiver uma situação diferente). Antigamente esse plano de trabalho era feito no vestiário, hoje no quarto de hotel, num ambiente reservado, e já vai para o jogo com todo o plano de trabalho pronto.

Jogadores comentam que viajam muito, mas conhecem pouco dos lugares para os quais viajam. Nestas viagens, sobre tempo para conhecer as cidades, fazer turismo?

Idem. Árbitro acho que é até pior. Não é compatível com a profissão você se desgastar com turismo e depois ir apitar o jogo. Gostaria de fazer turismo, mas teria que ir dois ou três dias antes. Normalmente, chegamos ao aeroporto, pegamos um táxi, ou alguém da Federação está lá para nos receber, e nos levas ao hotel. Chegou no hotel, só sai para almoçar, ou come no próprio hotel, e dali só para o campo de jogo. Aeroporto-Jogo-Hotel-Aeroporto. O futebol me proporcionou viajar o país inteiro: Amazonas, Acre, Rondônia. Alguns lugares que nunca imaginava que um dia poderia conhecer. Fora outros pontos turísticos, como Maceió, Fortaleza, Pernambuco, Recife, Porto Alegre, Rio de Janeiro.

Da Zona Leste para o resto do Brasil?

Na verdade, sou do interior de São Paulo, radicado na Zona Leste da capital. E daqui fui para o mundo. O futebol me proporcionou conhecer lugares fora do Brasil. Tive a felicidade de ir para o México, Paraguai, muito bacana ter isso no currículo. Nasci em São Paulo, mas toda minha criação foi em Garça, uma cidade entre Marília e Bauru. Retornei a São Paulo aos 21 anos e passei a morar na Zona Leste de São Paulo.

Marcelo Aparecido Ribeiro De Souza concilia arbitragem com seu estabelecimento. Foto: Giancarlo Machado

E como surgiu a idéia de criar a Chopperia e Bar do Juiz em Guaianases?

Muitos dizem que o árbitro de futebol é um jogador de futebol frustrado. Nós gostamos de futebol, de assistir os jogos, e nada melhor do que estar num bar com os amigos. Pode ser em casa fazendo um churrasco, mas o barzinho é uma ótima opção. Um dia pensei: “Por que não fazer um barzinho do juiz, voltado ao futebol e ao esporte de modo geral?”. Hoje, além do futebol, nós temos UFC, X-Games, e até Olimpíada de Inverno é transmitida ao vivo, com atletas representando o Brasil. Foi uma boa idéia fazer um barzinho voltado a esse mercado e a esse tipo de público. Mas eu não esperava que nós teríamos esse sucesso que, graças a Deus, nós estamos tendo. Deu certo, o pessoal gostou bastante. Unimos futebol e música, outra coisa que faz parte da cultura brasileira. Quando não é o esporte, é a música popular brasileira: samba, MPB, pop/rock.

Todos em Guaianases, vizinhos e freqüentadores do bar, sabem que você é juiz?

Não vou dizer que todos. Alguns ainda não associaram uma coisa à outra. “Não brinca, é por isso?”. Muita gente não associa. Mas quem é ligado ao esporte, já sabe que eu sou juiz. Inclusive eu tive a felicidade deles me verem atuando algumas vezes. A cobrança é grande também (risos). Eu pensei em vários nomes. Mas acho que “Bar do Juiz” ficou legal e essa sacada deu certo.

Você falou que sofre cobranças. Tem alguma história mais pesada ou engraçada?

Várias. Eu tenho sido abençoado, não esperava que seria tão boa a receptividade do meu público. Eu tenho a cada dia ficado mais surpreso com as reações deles. Eles até têm visto com outros olhos os árbitros de futebol. É engraçado. Eles vêm conversar comigo, dão parabéns, às vezes cornetam, mas sempre com muito respeito. Minha gerente me fala que quando estou no campo de jogo, eles gritam “Ah juiz, aqui você vai apanhar”, “Ei juiz, você está roubando”, “juiz, eu te conheço, sei onde você mora”. Eles fazem esses comentários no bar se é um jogo que estou apitando, mas de uma maneira descontraída, de brincadeira. Mas o bacana é quando chego lá, o pessoal me respeita e me recebe de maneira muito boa, fazem comentários pertinentes, tipo: “o jogo estava difícil, né?”. Eu tinha até receio, principalmente quando faço jogo de equipes grandes, mas meu público merece parabéns. Eles sabem qual é o limite. Nunca tive problemas até o momento e espero não ter até o final da carreira.

Além da arbitragem, Marcelo Aparecido Ribeiro de Souza é dono de um par na Zona Leste de São Paulo

Mudou a relação do juiz/dono do bar com os torcedores/clientes?

O pessoal brinca na hora do jogo: “Sei onde você mora”, “sei onde trabalha”, conheço sua mulher”, mas tudo na brincadeira. É até mais um ponto positivo do que negativo. Eles têm orgulho de ver e conhecer um juiz de futebol, me defendem, “o cara é gente boa, é honesto, é trabalhador”. Passamos uma outra imagem, até quando envolve outros colegas árbitros. Eles analisam quando o árbitro errou ou acertou e falam: “aquele cara é bom, né?” ou “Marcelo, o seu colega não foi bem no jogo”. Mas ninguém chega e fala: “o cara é ladrão, é bandido”. Era um receio que eu tinha: como vai ser o torcedor, que na hora da emoção perde a razão? Não sou um estudioso, mas até comento com os clientes que uma das razões da violência é terem separado os torcedores, pois começaram a formar bandos, tribos. Seu eu tivesse feito isso no meu bar, “olha, desse lado vão ficar torcedores da equipe A e do outro lado da equipe B”, com certeza eu já teria algum tipo de problema no bar. No calor da emoção, as pessoas começam a ofender o outro lado, que começa a se sentir injustiçado, o que leva à ignorância e violência. Quando eu abri o bar, tinha muito receio da violência: “como vão conviver corintianos, palmeirenses, são-paulinos e santistas, juntos, no mesmo ambiente?”. Mas você acredita que em todos estes anos eu nunca tive nenhum tipo de torcedor no bar? Aconteceu de um gol alguém já estourar a cerveja ao comemorar, mas de forma tranqüila. E eu pensei: será que não é por isso? Por que você vê na mesa palmeirenses, santistas, corintianos, todos juntos, amigos, com suas camisas, e nas mesas ao lado outros torcedores, e eles conseguem conviver. Quando é gol do Corinthians, gritam; quando é do Palmeiras, comemoram; e assim por diante. E nunca tive problemas. Acho que se tivesse dividido poderia ter tido problemas. Quando a pessoa está ao seu lado, você vai tentar respeitá-la. Mas quando ela lá do outro lado, você já a vê como inimiga. Como se fosse uma guerra, ele é meu inimigo,é matar ou morrer. Na Copa do Mundo, por exemplo, croatas e brasileiros ficaram lado a lado e não teve nenhum tipo de confusão. Esse é um caminho: voltar ao que era, ao que os mais velhos dizem, que iam aos jogos juntos. Pode acontecer na numerada, por exemplo, com o pai são-paulino e o filho corintiano, ou vice-versa. E estão sentados ao lado de outros torcedores, de times diferentes.

Você está numa posição privilegiada e diferente: você é árbitro de futebol, tem um bar cujo tema é futebol localizado na Zona Leste paulistana, próximo à Arena Corinthians, conhecida também como Itaquerão. Qual a sua opinião sobre a construção do estádio? Ela é benéfica para a cidade e, especificamente, para a Zona Leste?

Eu acho que sim. A construção do estádio na Zona Leste é muito positiva. Não sei se foi vista com bons olhos pelo resto da cidade. A escolha do estádio na Zona Leste foi muito criticada. Algumas personalidades fizeram críticas duríssimas. O que se mostrou um equívoco. A Zona Leste é uma região da cidade muito produtiva. Além do potencial industrial e comercial, temos que destacar a alta qualidade do potencial humano daqui. Podemos dizer que a Zona Leste é uma cidade dentro de São Paulo. E era uma parte esquecida da cidade, até com um certo preconceito. Mas só porque muitas destas pessoas que criticam não conhecem a Zona Leste, que não fica devendo para nenhuma outra região da cidade. Temos que melhorar bastante a infraestrutura, mas em outros lugares também ainda não é o ideal. Com o estádio e a abertura da Copa, acho que passarão a ver com bons olhos a Zona Leste. Trata-se de uma região carente. Quando abri o primeiro bar em Guaianases, ouvi muito isso: “Juiz, você fez um negócio para a gente que ninguém tinha feito”. Alguns falaram que para aproveitar um bar legal iam para o Tatuapé, Anália Franco ou mesmo Moema. E agora falam que podem fazer isso perto da casa deles. “Você acreditou que a gente tinha potencial para freqüentar um bar como esse”. Depois surgiram outros parecidos. Ainda bem que nós incentivamos isso. Isso foi bom. E lá nós somos os pioneiros. Eu até brinco: “Se eu fosse lá na Vila Olímpia ou Moema, eu iria ser mais um. Aqui eu sou o Bar do Juiz. Eu sou diferente”. E tenho que agradecer muito à minha equipe, meu pessoal. Temos que valorizar o ser humano. A relação interpessoal é o mais importante. Montamos uma equipe boa para atender bem os clientes. Não basta só o produto bom, precisa ter qualidade no atendimento, qualidade nas pessoas. As pessoas vão porque gostam do atendimento do juiz, ou do atendimento do “Baixinho”, por exemplo. Isso é bem legal.

E como pretende aproveitar a Copa do Mundo, quando você possivelmente estará de férias?

Acredito que estarei de férias, mas não sei ainda. Você sabia que árbitro de futebol é o único que não tem férias? Os jogadores lutaram e conseguiram ter férias. Nós árbitros não temos férias. Quando os campeonatos acabam, os jogadores entram de férias. Mas nós já começamos a nos preparar para o campeonato seguinte. Por exemplo: a Federação Paulista chama seus árbitros, convocados para trabalhar no Campeonato Paulista, para uma série de treinamentos. Logo no início do ano você vai para uma pré–temporada, mas já está se preparando desde o fim do Campeonato Brasileiro. Não tem férias. Só para na semana de Natal e Ano Novo. Já durante estes campeonatos internacionais, como a Copa das Confederações e Copa do Mundo, o árbitro para, mas não pode ficar despreparado. Nestes períodos, a CBF organiza cursos, reúne seus árbitros, faz treinamentos, cursos, revê o que aconteceu na primeira rodada do Brasileirão, o que pode ser melhorado. É um período de aprimoramento, como é chamado. Não tem descanso. Mas espero que na Copa do Mundo seja diferente. Se tiver um tempinho livre, vou acompanhar um jogo da Copa, pois consegui comprar um ingresso para uma partida fora de São Paulo. Mas a maior parte do tempo estarei cuidando dos meus bares. São bares com tema futebol e teremos o Brasil e a Zona Leste no maior evento futebolístico do planeta. A Copa vai acontecer ao lado do meu bar, menos de 1km do meu bar.

O que vocês estão preparando de diferente nos bares para a Copa do Mundo?

Nós estamos preparando com o web designer o novo layout da casa, para que as pessoas possam reservar as mesas pelo site. Estou montando também um Kit Copa; o cliente vai ganhar bandeirinha, apito e chapéu. E vamos enfeitar a casa com artigos para a Copa do Mundo: bolas, bonecos do mascote da Copa, o que for preciso para ficar com a cara da Copa do Mundo. Afinal, pode ser que o ônibus da seleção passe em frente ao bar, na av. Radial Leste. Se eles passarem, nós vamos dar boas-vindas a eles. E desejar boa sorte.

E casa ficará aberta todos os dias da Copa?

Não somente em dias de jogos do Brasil, mas em todos os jogos da Copa. Estava agora mesmo estudando a tabela para começar a fazer o planejamento.

E, por fim, se alguém pergunta “qual é o seu time?”, o que você responde?

Brasil (risos). Eu sou Brasil. Como eu não vou poder apitar o Brasil, sempre serei Brasil.

Fonte: Equipe Ludopédio

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