Há dois anos, Igor Benevenuto
trocou os gramados pelas cabines de VAR. Estava com 41 anos. Mas a
grande mudança não foi essa. Também em 2022 ele decidiu assumir
publicamente que era gay no futebol. Foi o primeiro árbitro FIFA a
fazer isso.
Ele anunciou no podcast "Nos
Armários do Vestiário", da jornalista Joanna de Assis, incerto sobre
o impacto. Profissionalmente, continuou como enfermeiro e presente
na arbitragem, tanto em jogos das Séries A e B como nas
eliminatórias. Foi ainda o único árbitro brasileiro na Mundial
sub-17, em 2023, na Indonésia. Pessoalmente...
"Foi muito importante.
Primeiramente, para me libertar, viver plenamente quem sou eu hoje
em dia. Não enganar ninguém. Não me enganar e poder viver meus
relacionamentos. Hoje eu posso sair onde eu quero, conviver com quem
eu quero, posso ter um relacionamento sem ser julgado. E quem quiser
julgar é problema dele. Isso não me incomoda mais" - disse
Benevenuto à ESPN, em entrevista em 2023.
O futuro no futebol chegou a ser
alvo de preocupação de Benevenuto porque o tema ainda é um tabu,
mesmo com campanhas de conscientização da CBF e dos clubes, mesmo em
uma semana como esta, de orgulho LGBTQIA+. Mas ele decidiu correr o
risco e se abrir para a modalidade que ele escolheu na infância por
ser "diferente".
“Esse foi o ponto chave porque
eu odiava futebol até meus 14 anos. E todos os meus amigos eram só
futebol, enquanto eu não participava de nada. Eu já tinha atração
por homens, mas não vivia nenhum tipo de contato. Ficava excluído de
tudo. E já tinha aquele bullying: 'Quem não joga bola é viadinho.
Gosta de outra coisa'. Aquilo me incomodava muito, e eu tinha uma
família evangélica muito rígida. Então, eu tinha que arrumar alguma
estratégia para poder participar."
"Foi no ano da Copa do Mundo de
1994. Eu assisti meu primeiro jogo e eu vi aquela figura diferente,
especial, comandando o jogo. Achei muito interessante. Aí eu falava
com os meninos: 'Agora vou apitar. Vocês vão jogar, e eu vou ser o
juiz'. Eu comecei assim" - disse.
O futebol foi uma ferramenta de
inserção social para o garoto Igor, mas a orientação sexual era
mantida em segredo, até em casa. Foi um acidente que acabou fazendo
com que ele saísse do armário para a mãe e a irmã mais velha.
"Quando eu tinha 24 pra 25
anos, eu tinha uma namorada, terminei esse namoro com ela e daí eu
tive meu primeiro contato com uma boate gay. A partir daí eu comecei
a frequentar e numa dessas eu fiquei com um rapaz. Ocasionalmente
minha mãe tinha uma amiga que trabalhava com ela, que era lésbica, e
ela me viu. No outro dia, ela disse para minha mãe: 'Graça, seu
filho é gay? Eu estava em tal lugar e eu o vi com um cara'. Minha
mãe enlouqueceu" - relembrou Benevenuto.
"Aí no outro dia, primeiro dia
de férias da minha faculdade, eu estava em casa e ela falou: 'Eu sou
sua mãe. Pode abrir o coração que eu vou te apoiar de qualquer
forma. Você gosta de homens ou de mulheres?'. Eu tentei até amenizar
a situação e disse: 'Não vou mentir para você. Mas eu gosto de
meninas e meninos'. Aí ela surtou, começou a chorar: 'Eu já sabia
que você era porque desde os quatro anos de idade você ficava
olhando para os homens e isso me incomodava'. Ficou três meses sem
falar comigo. Entrou em crise. Ficou depressiva. Aí ela chegou e
contou pra minha irmã. Aí minha irmã veio conversar comigo. Aí a
família ficou sabendo assim" - completou.
|
Igor Benevenuto em ação durante uma
partida de futebol Getty Images |
O choque durou um tempo, mas a mãe
do árbitro acabou se tornando uma das pessoas mais solidárias quando
ele decidiu que deveria expor publicamente.
"Com o tempo ela foi
absorvendo, vendo que não mudava o meu caráter. Acho também que o
que vem na cabeça dos pais é a questão da agressão, a questão do
preconceito, da pessoa sofrer algum tipo de problema grave, igual a
gente vê várias pessoas que às vezes são mortas até hoje por causa
da sua orientação sexual. No dia que liguei para ela e disse:
'Amanhã vai sair uma reportagem que estou me assumindo'. Ela mora na
Nova Zelândia com a minha irmã. Ela começou a chorar muito: 'Pra que
você vai fazer isso? Não precisa. Só quem tem que saber é a gente'.
Depois disso ela me ligou e falou: 'Você tem que fazer mesmo, tem
que se libertar, eu te apoio. Se der problema, você vem para a Nova
Zelândia porque aqui é aceito. Você tem que ser feliz'. E hoje a
gente tem uma convivência supersaudável em relação a esse assunto."
"Ela conseguiu absorver,
conseguiu mudar o comportamento dela e eu acho que é o natural
porque ela vem de uma geração totalmente ao contrário. Ela foi
ensinada de uma forma muito mais rígida. Não teve nenhum tipo de
aparato, nenhum tipo de ensinamento do que é a questão homossexual.
Ela aprendeu, está aprendendo. Eu também. Tem algumas coisas que
ainda a gente tem que melhorar, mas é evoluindo sempre. Viver a vida
e ser feliz é liberto. Eu me libertei" - disse.
No mundo profissional,
especificamente no futebol, a condução de Igor até assumir foi um
pouco mais desgastante. Ele revelou que criou uma máscara para
sobreviver.
"Eu comecei a arbitragem com
17, então foram 25 anos sem poder assumir pelo medo da minha
carreira ser encerrada e eu não realizar meus sonhos. E eu sei que
vários jogadores, principalmente de base, que tinham algum
estereótipo ou alguém tinha alguma suspeita tiveram as carreiras
ceifadas. Por isso, ainda hoje, no meio do futebol, a gente tem
casos que eu conheço anonimamente, pessoas me contaram, de jogadores
que são casados, mas que vivem uma vida dupla."
"A gente acaba montando algumas
estratégias. Eu era uma pessoa menos acessível, uma pessoa mais
restrita. Às vezes, tinha alguns comportamentos de agressividade, de
dar respostas ríspidas. De excluir as pessoas para não ter tanta
proximidade. As pessoas geralmente falavam: 'Ah, você é um homem
bonito, interessante, estudioso, trabalhador. Cadê sua namorada?'.
Eu sofria mesmo internamente. Todo dia deitava na cama ali e ficava
pensando qual seria a estratégia para outro dia para poder levantar
e não demonstrar isso para ninguém. Eu sofri. Tive depressão, já
tive que tomar medicamento. Custei a encontrar uma psicóloga que eu
pudesse verbalizar e colocar isso para fora" - disse.
Hoje, tudo é aprendizado para ele,
que passou a falar abertamente, inclusive fora do Brasil. Repercutiu
mundialmente a notícia de que Igor Benevenuto foi o primeiro árbitro
FIFA a se assumir. Além de dizer que está mais leve, ele também se
deparou com uma outra situação. Pessoas do futebol dividindo com ele
seus dramas.
"Recebi muitas mensagens pelo
Instagram de pessoas, até de forma anônima, que vivem no futebol e
que não se assumem pelo medo do preconceito. A gente vê casos de
torcedores, de jogadores, né, sendo agredidos verbalmente, às vezes
até fisicamente. Às vezes não conseguir um clube de primeira divisão
ou até mesmo ser tirado do futebol. A maioria não se liberta, não se
mostra, não se assume, por ter esse preconceito ainda muito latente
até hoje. Eu tive uma experiência feliz. Tive apoio da comissão de
arbitragem, da CBF. A Fifa mandou um e-mail agradecendo a minha
postura. E recebi várias mensagens, várias pessoas me agradecendo
pelo que eu fiz. Recebi telefonemas de dirigentes, de pessoas que
tinham isso dentro da família. Começou a olhar de uma forma
diferente para poder ajudar seus filhos, ajudar os próprios
jogadores de base, introduzir esse tipo de assunto porque era uma
coisa que era totalmente reprimida, não era conversada e muitos
jovens sofrem esse tipo de situação. Eu acho que foi apenas um
pequeno passo, mas um passo importante pra gente democratizar. A
gente tem que colocar o futebol acessível a todas as pessoas,
independente da orientação sexual dela” - completou Igor
Benevenuto.
As informações são da ESPN