Hoje, no dia internacional das mulheres, elas são as protagonistas.
Mas, nos outros 364 dias do ano, não. Ao menos, não no futebol.
Mesmo que o Brasil conte com a “Pelé de saia” — embora nem Marta nem
nenhuma outra jogadora atue com uniforme customizado —, a Seleção
teve a primeira técnica apenas em 2016, e no comando da equipe
feminina. Entre os clubes masculinos, cogitar a contratação de uma
treinadora ainda soa como algo espantoso. Se nos bancos de reservas
ou em cargos de gestão as mulheres são quase invisíveis, na
arbitragem, ganham um pouco mais de espaço. Então, o preconceito
passa para a fase seguinte: resistir ao tratamento desigual no
exercício da profissão.
“Todas as vezes em que a gente entra em campo, as pessoas acham
que não vamos conseguir apitar as partidas. E isso parte de todos os
envolvidos: torcida, jogador, comissão técnica”, lamenta a ex-juíza
Simone Silva, 42 anos, que atuou no quadro nacional de arbitragem da
CBF de 2007 até o ano passado. “Quando uma mulher estréia, causa
mais dúvida do que um homem, e tudo gera suspeita de capacitação.”
Ela expõe que sempre sofreu preconceito na carreira. Nos 17 anos de
arbitragem, apitou o Campeonato Carioca feminino e masculino e a
Série D do Campeonato Brasileiro masculino.
Para a carioca, o peso do erro de um homem é bem diferente da falha
de uma mulher.
“Nós somos muito mais sacrificadas. Tenho certeza porque
vivenciei isso”, desabafa ao lembrar que as desconfianças
ocorrem até em situações de acertos.
“O futebol é muito masculino, e a gente ainda escuta que lugar de
mulher não é no futebol.”
Para lidar com a pressão que sofria nas partidas, Simone se lembra
que se concentrava bastante para não cometer erros “infantis” no
começo do jogo e ganhar credibilidade.
“Depois, passei a driblar a pressão com sorrisos, gracinhas e
brincadeiras.”
Nem sempre, porém, a estratégia é suficiente. A agora ex-bandeirinha
Ana Paula Oliveira — um dos nomes de maior destaque da arbitragem
feminina — foi vítima, em 2007, da fúria preconceituosa do então
vice-presidente do Botafogo, Carlos Augusto Montenegro. Ele
protestou contra dois gols anulados incorretamente pela assistente,
com a conseqüente eliminação do alvinegro da semifinal da Copa do
Brasil, em duelo contra o Figueirense. “Ela é totalmente
despreparada. Errou dois lances seguidos. Não vejo mulher em Copa do
Mundo, não vi mulher na final da Liga dos Campeões nem nas decisões
mais importantes do mundo, mas colocaram uma mulher hoje, justo
contra o Botafogo”, vociferou, na ocasião.
Fernanda Colombo foi outra bandeirinha atacada por dirigentes de
clubes importantes com “argumentos” que fogem ao desempenho
profissional. “A gente pega essa bandeira bonitinha. Se ela é
bonitinha, que vá posar na Playboy”, disse o diretor de Futebol do
Cruzeiro, em 2014, Alexandre Mattos. À época, Fernanda impediu uma
jogada que poderia resultar num gol: marcou impedimento inexistente
do cruzeirense Alisson, aos 41 minutos do segundo tempo, no clássico
que terminou com a derrota do time celeste para o Atlético-MG no
Brasileirão.
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Ambos os casos envolveram falhas graves, é verdade. Como
conseqüência, além de sofrerem o afastamento, as duas
sucumbiram aos ataques preconceituosos e acabaram não
conseguindo retomar a carreira. Na ocasião, Ana Paula
foi suspensa por 15 dias. Nos treinos para retornar à
arbitragem, ela lesionou a tíbia e acabou reprovada no
teste físico da FIFA, com direito a polêmica pelo fato
de a entidade não a ter isentado do exame físico, já que
a bandeirinha era assistente FIFA e estava contundida.
O currículo de Ana Paula, com atuações em finais de
estaduais, como São Paulo x Corinthians, em 2003 — foi a
primeira mulher a atuar —; e em oitavas de final da Copa
Libertadores, em 2005; e com o prêmio de árbitra
revelação dos Jogos Olímpicos de Atenas-2004, não foi
suficiente diante dos erros no jogo do Botafogo. Naquele
mesmo ano, ela fez ensaio fotográfico nua para a revista
Playboy, e as críticas à profissional aumentaram. A
aposentadoria era questão de tempo e foi anunciada
oficialmente em 2012, aos 34 anos. |
Fernanda, aos 25 anos, também se diz aposentada da função. Ela ficou
conhecida como musa, apelido que ganhou pela beleza, embora tenha
trabalhado em mais de 50 jogos profissionais e chegado a ser
aspirante FIFA. A carreira ia bem até o fatídico impedimento
equivocado no clássico mineiro. Após o afastamento, foram quase dois
meses para voltar a exercer a função, mas na Série C do Brasileiro.
Após uma década, novamente uma mulher na
final
Antes da polêmica com o Botafogo, Ana Paula Oliveira atuou na final
da Copa Brasil de 2006, entre Flamengo e Vasco.
"Fui muito bem, mas foi uma loucura a repercussão", recorda.
Só após 10 anos, Nadine Silva compôs novamente um trio de arbitragem
em uma final, desta vez entre Atlético-MG e Grêmio, pela Copa do
Brasil. Desta vez, o fato não foi tão noticiado.
"Meu lamento foi que levou tanto tempo para termos uma mulher
novamente na arbitragem de uma final, mas a forma como foi tratado,
com naturalidade, é uma conquista", comemora Ana Paula.
"Meu único medo era se a Nadine tivesse cometido um equívoco na
final. As mulheres ainda são muito mais cobradas. Se uma mulher
errar hoje em uma situação crucial, acho que a repercussão ainda vai
ser maior" pressupõe Ana Paula, agora instrutora e
diretora-secretária da escola nacional de arbitragem de futebol da
CBF. No entanto, ela acredita que seria menor do que foi nos tempo
em que ela atuava.
"Na minha época, era diferente. Hoje, não dá para aceitar mais
isso. É inadmissível tratar homens e mulheres diferentes com erros
iguais", condena Ana Paula.
Ainda que seja inadmissível, até mesmo alguns jogadores reparam na
exigência excessiva com a arbitragem feminina. Otávio Henrique
Santos, meia do Atlético Paranaense, reconhece o tratamento
diferenciado.
“Você vê bastante erro na arbitragem em geral, mas como não é tão
comum ver mulheres na função, as pessoas analisam mais e ficam mais
atentas em cada lance.” Para ele, a presença feminina dentro de
campo não muda quase nada em um jogo. O único ponto diferente é o
tom de voz na hora de reclamar.
“A gente fica meio constrangido para reclamar e quando é uma
mulher temos um cuidado maior na hora de falar”, explica.
Avanço a passos lentos
Apesar de terem ganhado mais espaço ao longo do tempo, as mulheres
têm presença tímida na arbitragem. Dos 215 árbitros presentes no
quadro da CBF, apenas 15 são do sexo feminino, o que corresponde a
7%. O número de assistentes é um pouco maior: 58 mulheres em um
total de 311, chegando a 18,6%. “A procura das meninas quando entram
no curso é somente a assistência. São raras as exceções que querem
ser árbitras centrais. E isso acontece porque elas não são vistas”,
afirma Simone Silva, ex-árbitra, que hoje atua como instrutora da
Escola de Arbitragem da Federação de Futebol do Rio de Janeiro
(EAFERJ).
No curso de formação de árbitros de 2016 da EAFERJ, entre os 35
alunos, apenas quatro eram mulheres. Neste ano, o número caiu para
somente duas. Rejane Caetano, 30 anos, fez o curso em 2011 e hoje é
a única árbitra do Rio no quadro da CBF. Ela apitou 22 partidas em
2016 e entrou no quadro da FIFA neste ano. “Quando entramos na
arbitragem, fazemos um cronograma de metas. Fico feliz, pois as
coisas aconteceram rápido comigo”, analisa.
Apesar de o espaço para a mulher dentro do futebol ser menor e
diferente do ocupado pelo homem, a exigência física é igual. As
mulheres têm de conquistar o mesmo índice deles nos testes físicos
para apitar em campeonatos masculinos. Rejane concorda com a
exigência, mas reconhece que é a parte mais difícil.
“A parte física é a que mais exige de nós”, avalia.
A professora de educação física conta que consegue dividir um pouco
do tempo para treinar e atingir o índice para apitar em torneios
masculinos. Em 2017, ela também estreou na Série A do Campeonato
Carioca.
Simone relembra os árduos testes para conseguir a chance de apitar
um campeonato masculino.
“Tem de ter tempo pra treinar e também para descansar porque é
muito pesado”. Para ela, o investimento nem sempre tinha um
retorno positivo como os que árbitros masculinos recebiam.
“Era difícil fazer sacrifícios, conseguir completar o teste
físico, estar pronta e, ainda assim, não ter o mesmo aproveitamento
que os homens”, critica.
A jogadora de futebol Dany Helena, ex-Cresspom que atuará pelo
Iranduba da Amazônia no Brasileiro feminino, ressalta a
representatividade das árbitras mulheres nos torneios femininos
internacionais.
“Disputei a Copa Libertadores no ano passado e só mulheres
apitaram as partidas que joguei. Que elas possam ter mais espaço no
Brasil também”, almeja.
A técnica Gleide Costa, que comandará o Botafogo PB na Série A2 do
Brasileiro feminino, vê uma crescente da participação feminina no
futebol embora não seja a desejada.
“Vem crescendo a passos muito pequenos, porque o critério tinha
de ser competência e não gênero. Na prática, ser mulher é um
empecilho”, lamenta.
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Asaléa de Campos Micheli nasceu em 1945, época em que as
mulheres eram proibidas por lei de praticarem esportes
“incompatíveis com as condições de sua natureza”. Sem a
intenção de jogar, a mineira se formou árbitra em 1967.
Encontrou uma brecha no decreto-lei nº 3.199, de 1941,
que dizia não ser “permitida a prática feminina de lutas
de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol
de praia, polo, halterofilismo e baseball”.
Léa Campos, como é chamada, foi a primeira árbitra de
futebol no mundo de que se tem conhecimento. “Eu me
sinto feliz quando uma mulher é escalada, seja como
auxiliar, seja como árbitra central. Elas passaram pela
porta que abri e fico muito orgulhosa por isso”, disse
Léa Campos, os 72 anos, ao Correio.
Fonte:
Maíra Nunes, Maria Eduarda Cardim - Especial para o
Correio |