Ubiraci Damásio troca arbitragem
por trabalho no Detran
Ex-árbitro vira
motorista e auxiliar administrativo do Detran e relembra histórias do futebol, como o beijo de Cleberson
02/01/2012 - O amarelo e o vermelho dos
cartões agora aparecem nos sinais de trânsito. A correria em campo foi
trocada pela prudência atrás do volante. Mas a convivência com a
torcida, essa não mudou nada. A vida de Ubiraci Damásio estacionou no
Rio de Janeiro desde que ele se aposentou em 2010. Há um ano e meio, o
ex-árbitro trabalha como motorista e auxiliar administrativo no Detran.
Ouve brincadeiras dos companheiros de trabalho sobre jogos que apitou
e lembra com detalhes da maioria deles. Pênaltis, expulsões, gols e
até mesmo um beijo recebido de um jogador no meio do campo (assista
ao vídeo mais abaixo). Capítulos de uma história de 23 anos na
arbitragem.
- Eu fiquei marcado
como um ídolo. Não sou jogador, mas a torcida passa na rua e pede para
tirar foto comigo. Até hoje. Se não tivesse a imposição da idade, acho
que continuaria, pelo menos, até uns 50 anos (risos). Recebo sempre
convites para apitar. Tenho feito jogos particulares em clubes e
condomínios, fiz o showbol e também apito na liga
da Zona da Mata em Minas Gerais. Não
consigo parar - afirmou o ex-árbitro, hoje com 44 anos, dois filhos,
Marcos Vinicius e João Vitor, e casado com Guacyra há 18 anos.
As viagens para manter vivo o gosto
pela arbitragem se intercalam com o trabalho no Detran, onde também
pretende implementar um projeto sócio-educativo voltado para os
esportes, como futebol e atletismo. Na sede no Rocha, bairro da Zona
Norte do Rio de Janeiro, Ubiraci trabalha em um escritório pequeno,
com mais três funcionários, e chefiado pelo diretor de transportes,
Augusto Oliveira. Quando precisa sair para fazer a função de
motorista, dirige um dos carros populares do departamento. Trabalha de
segunda a sexta-feira, em horário comercial. Rotina bastante diferente
da vivida em tempos de futebol.
- Não tenho o que reclamar. Faço a
parte burocrática, levo os instrutores ao local do exame, trago os
malotes com as provas. Até gosto. Mas eu tenho pedido para o meu chefe
para não ir mais aos locais dos testes porque quando eu chego o
pessoal todo me reconhece. Fica até difícil. Falam “Ah, você é o
instrutor, deixa eu passar aí.” Eu não me meto nisso - disse.
Eu sou daquele tempo romântico. Tem
que ter polêmica. Se não tiver, não tem graça"
Ubiraci Damásio
Onde Ubiraci se mete, apenas para dar
sua opinião, é na arbitragem brasileira. Para o ex-dono do apito, a
qualidade dos profissionais caiu. A explicação para isso, segundo ele,
está na formação dos árbitros.
- No Rio de Janeiro, estamos com
péssimos árbitros. O problema é que não estão dando tempo para
prepará-los. Eu fiquei seis anos no departamento amador para depois
chegar ao profissional. Agora, estão chegando com dois anos e não têm
experiência. O resultado é esse aí. Os diretores das comissões de
arbitragem em todo o Brasil estão com essa mania de renovar. Não é
assim. Tinham que pegar os rapazes no curso e colocar para apitar
infantil, juvenil, juniores, para depois chegar no profissional. Aí
teriam rodagem para isso. Não culpo os árbitros. Culpo as comissões -
afirmou.
Ubiraci cita o exemplo do árbitro
Péricles Bassols, criticado pela atuação no clássico entre Vasco e
Flamengo pela última rodada do Brasileirão.
- Péricles é um bom garoto, mas podiam
tê-lo lapidado um pouco mais. Ele apitou bem o jogo, mas faltou
experiência, malandragem. Eu tive uma passagem parecida. Fui fazer um
Bahia x São Caetano e um jogador falou: “Galinha do céu apita?”.
Perguntei quem tinha dito aquilo e todo mundo começou a rir. Então
expulsei o banco todo. Nenhum jogador de futebol é santo, eles xingam
mesmo, e o árbitro não pode responder. Mas o jogador fala contigo e
daqui a três minutos ele vai errar lá na frente, aí você pune. Tem
recursos pra isso - disse Ubiraci, citando a expulsão do jogador
Renato, do Flamengo, que afirmou ao sair de campo que o xingamento ao
árbitro teria sido feito por Bernardo, do Vasco.
Beijo de jogador fez filhos
brigarem na escola
Ubiraci Damásio ficou marcado por
diversos capítulos de sua história. O mais curioso talvez tenha sido o
do “jogador beijoqueiro”. Na final da Taça Rio de 2007, Cleberson, do
Cabofriense, deu um beijo no árbitro quando viu que iria receber um
cartão amarelo por ter cometido uma falta. O episódio é lembrado com
bom humor, mas também com uma lembrança ruim sobre as provocações que
os filhos tiveram que ouvir na escola.
- Não entendi até hoje, mas dei o
cartão pela falta, não por isso. O que me marcou mais foi até pelos
meus filhos. Eu fui chamado no colégio porque meu caçula, que tinha
seis anos, bateu em um garoto que falou “seu pai é beijoqueiro, é
viado”. O mais velho brigou também. Isso foi uma confusão. Quero um
dia perguntar para o Cleberson por que ele fez isso. Torcedor fica me
chamando de beijoqueiro na rua até hoje. Essa parte foi até legal.
Lembro agora com bom humor. Mas na época não gostava de comentar
porque eu achava que dois negros se beijarem era complicado (risos) –
brincou.
Outro jogo que ficou marcado na
carreira de Ubiraci foi o “clássico do chocolate” entre Flamengo e
Vasco na final da Taça Guanabara de 2000 (assista ao vídeo ao
lado). O Cruz-Maltino venceu por 5 a 1, mas o árbitro
precisou expulsar seis jogadores devido ao clima tenso que foi criado
antes da partida com as provocações de dirigentes.
- Foi um jogo muito difícil. O Rio
parou para ver. A provocação passou para dentro de campo. Então, tive
que expulsar seis. Os jogadores não queriam mais jogar, só trocar
tapas. O Eurico (Miranda, então presidente do Vasco) os inflamou de
uma maneira que levou para dentro do campo. Foi um momento que me
marcou, com certeza - concluiu.
Frustração por não chegar ao
quadro da Fifa
Ubiraci ainda tem muitas histórias no
futebol. Um colega de arbitragem que “recebeu santo” em um avião, um
desmaio falso para despistar e conseguir sair de um jogo em que depois
soube que o capitão do time era dono de uma boca de fumo e até mesmo
uma partida em que foi confundido com homossexual. Muitas engraçadas,
que despertam risadas em qualquer um. Porém, há um momento triste em
sua carreira. O ex-árbitro se emociona ao comentar o porquê de não ter
conseguido entrar para o quadro da Fifa.
- Eu só consegui ser aspirante à Fifa.
Só fui estudar depois de velho. Tinha muito mal a sexta, sétima série.
Trabalhava em banca de jornal para ajudar a minha mãe. E,
infelizmente, na arbitragem, tem que ter padrinho. Dá até lágrimas nos
olhos, não gosto nem de falar sobre isso, mas o ser humano é capaz de
tudo. Eu só não fiz besteira porque minha mãe pediu. Mas me sabotaram.
Fiquei muito frustrado com o presidente da Federação do Rio na época,
Eduardo Viana, porque ele ajudou A e não ajudou X. O mesmo problema
que eu tive o outro também teve. Essa é a minha bronca também com o
Armando Marques (então presidente da Comissão de Arbitragem da CBF).
Fiquei chateado porque ele me disse que quando eu terminasse o segundo
grau a vaga na Fifa era minha. Quando eu terminei, fui lá. Ele me
mandou fazer uma redação e depois falou na minha cara que palavras o
vento leva. Depois me acusou que eu fazia parte de quadrilha. Aquilo
me chateou muito - lembrou.
Ubiraci, que hoje faz faculdade de
Educação Física e um curso de comunicação com uma professora de
português para aprimorar a oratória, acredita que houve também
racismo contra ele. E conta um episódio em que o preconceito foi
explícito.
- Até hoje um
negro não chegou ao topo da arbitragem carioca. Em 1992,
tínhamos dez árbitros negros no quadro. Eu pedi ao diretor, em
público, para colocar um trio negro. Ele falou “Deus me livre,
para que tanto crioulo? Já tem você.” Ele falou que só dois
poderiam subir, oito tinham que cair. Tentei falar com a
governadora Benedita da Silva na época, e os assessores dela não
deixaram. Eu fiquei indignado. Queria levar esse caso à frente,
mas me mandaram parar, porque assim eu ia encerrar a minha
carreira - revelou.
Ubiraci também faz críticas a
regulamentos e inovações da Fifa. Acredita que o uso de
assistentes atrás do gol, ação na qual foi pioneiro no Brasil,
precisa ser aprimorado e acha um absurdo os testes físicos da
entidade. Além disso,
Ubiraci
relembra histórias com companheiros de trabalho (Foto: Mariana
Kneipp/Globoesporte.com)
é contra a utilização de microfones
pelo árbitro. A explicação é simples e pode ser confundida com o
motivo de sua paixão pelo esporte.
- Eu sou daquele tempo romântico. Tem
que ter polêmica. Se não tiver, não tem graça. Se não tiver polêmica,
acabou o futebol – finalizou.